“Nosso sistema econômico mundial não se sustenta”, disse o Bispo de
Roma em uma entrevista concedida ao jornal espanhol La Vanguardia. “Eu não
tenho nenhuma iluminação; não trouxe debaixo do braço nenhum projeto pessoal”,
garante. “Descartamos uma geração inteira pelo simples fato de manter um
sistema que não é bom”, opina sobre os jovens desempregados.
Um dia após a oração com os
presidentes de Israel e da Palestina, o Papa Francisco cedeu uma entrevista a
Henrique Cymerman, publicada no jornal La Vanguardia, 13-06-2014. A tradução é
de André Langer, publicada no site IHU.
A violência em nome de Deus
domina o Oriente Médio.
É uma contradição. A violência
em nome de Deus não é uma exclusividade do nosso tempo. É algo antigo. Em
perspectiva histórica é preciso admitir que os cristãos, às vezes, também a
praticaram. Quando penso na Guerra dos Trinta Anos, era violência em nome de
Deus. Hoje, é inimaginável, não é verdade? Chegamos, às vezes, pela religião, a
contradições muito sérias, muito graves. O fundamentalismo, por exemplo. As
três religiões têm seus grupos fundamentalistas, pequenos em relação a todo o
resto.
E qual é a sua opinião sobre o
fundamentalismo?
Um grupo fundamentalista,
embora não mate ninguém, embora não ataque ninguém, é violento. A estrutura
mental do fundamentalismo é a violência em nome de Deus.
Alguns dizem que o senhor é um
revolucionário.
Deveríamos chamar a grande
Mina Mazzini, cantora italiana, e dizer-lhe “prendi questa mano, zinga” e que
leia o meu passado, para ver que... (risos) Para mim, a grande revolução é ir
às raízes, reconhecê-las e ver o que essas raízes querem dizer nos dias de
hoje. Não há contradição entre ser revolucionário e ir às raízes. Mais ainda,
creio que a maneira de fazer verdadeiras mudanças é a identidade. Nunca se pode
dar um passo na vida se não for de atrás, sem saber de onde venho, qual é o meu
sobrenome, o sobrenome cultural ou religioso que eu tenho.
O senhor quebrou muitos
protocolos de segurança para aproximar-se das pessoas.
Sei que pode me acontecer
alguma coisa, mas isso está nas mãos de Deus. Recordo que no Brasil haviam
preparado um papamóvel fechado, com vidros, mas eu não posso saudar um povo e
dizer-lhe que gosto muito dele dentro de uma lata de sardinhas, mesmo que seja
de vidro. Para mim, isso é um muro. É verdade que algo pode me acontecer, mas
sejamos realistas: na minha idade, não tenho muito a perder.
Por que é importante que a
Igreja seja pobre e humilde?
A pobreza e a humildade estão
no centro do Evangelho e o digo num sentido teológico, não sociológico. Não se
pode entender o Evangelho sem a pobreza, mas há que distingui-la do pauperismo.
Eu creio que Jesus não quer que os bispos sejam príncipes, mas servidores.
O que a Igreja pode fazer para
reduzir a crescente desigualdade entre ricos e pobres?
Está provado que com a comida
que sobra seria possível alimentar as pessoas que têm fome. Quando você vê
fotografias de crianças desnutridas em diversas partes do mundo, põe a mão na
cabeça, não é possível entender! Creio que estamos em um sistema econômico
mundial que não é bom. No centro de todo sistema econômico deve estar o homem,
o homem e a mulher, e todo o resto deve estar a serviço deste homem. Mas nós
colocamos o dinheiro no centro, o deus dinheiro. Caímos em um pecado de
idolatria, a idolatria do dinheiro.
A economia move-se pelo afã de
ter mais e, paradoxalmente, alimenta-se uma cultura do descarte. Descarta-se os
jovens quando se limita a natalidade. Também se descarta os idosos porque já
não servem, não produzem, são uma classe passiva... Ao descartar as crianças e
os idosos, descarta-se o futuro de um povo, porque as crianças projetam-se com
força para frente e porque os anciãos nos dão a sabedoria, têm a memória desse
povo e devem passá-la aos jovens. E agora também está na moda descartar os jovens
pelo desemprego. Preocupa-me muito o índice de desemprego dos jovens, que em
alguns países passa dos 50%. Alguém me disse que 75 milhões de jovens europeus
menores de 25 anos estão desempregados. É uma barbaridade.
Mas descartamos toda uma
geração por manter um sistema econômico que já não se sustenta, um sistema que,
para sobreviver, deve fazer a guerra, como sempre fizeram os grandes impérios.
Mas como não se pode fazer a Terceira Guerra Mundial, então fazem-se guerras
regionais. E o que isto significa? Que se fabricam e vendem armas, e com isto
os balanços das economias idolátricas, as grandes economias mundiais, que
sacrificam o homem aos pés do ídolo do dinheiro, obviamente se sanam. Este
pensamento único tira a riqueza da diversidade de pensamento e, portanto, a
riqueza de um diálogo entre pessoas. A globalização bem entendida é uma
riqueza. Uma globalização mal entendida é aquela que anula as diferenças. É
como uma esfera, com todos os pontos equidistantes do centro. Uma globalização
que enriquece é como um poliedro, todos unidos, mas cada qual conservando sua
particularidade, sua riqueza, sua identidade. Não é o que está acontecendo.
O senhor se sente ainda como
um pároco ou assume seu papel de cabeça da Igreja?
A dimensão de pároco é a que
mais mostra a minha vocação. Servir as pessoas vem de dentro de mim. Desligo a
luz para não gastar muito dinheiro, por exemplo. São coisas de um pároco. Mas
também me sinto Papa. Ajuda-me a fazer as coisas com seriedade. Meus
colaboradores são muito sérios e profissionais. Tenho ajuda para cumprir com
meu dever. Não devo dar uma de Papa pároco. Seria imaturo. Quando vem um chefe
de Estado, tenho que recebê-lo com a dignidade e o protocolo que merece. É
verdade que tenho meus problemas com o protocolo, mas é preciso respeitá-lo.
O senhor está mudando muitas
coisas. Para que futuro estas mudanças estão levando?
Não tenho nenhuma iluminação.
Não tenho nenhum projeto pessoal que trouxe debaixo do braço, simplesmente
porque nunca pensei que me deixariam aqui, no Vaticano. Todo o mundo sabe
disso. Vim com uma malinha para voltar logo em seguida para Buenos Aires. O que
estou fazendo é cumprir o que os cardeais refletiram nas Congregações Gerais,
ou seja, nas reuniões que, durante o Conclave, tiveram todos os dias para
discutir os problemas da Igreja. Daí saem reflexões e recomendações. Uma
recomendação muito concreta era que o próximo papa deveria contar com um
conselho externo, isto é, com uma equipe de assessores que não morassem no
Vaticano.
Diante do avanço do ateísmo,
qual é a sua opinião sobre as pessoas que acreditam que a ciência e a religião
são excludentes?
Houve um avanço do ateísmo na
época mais existencial, talvez sartreana. Mas depois viu um avanço rumo a
buscas espirituais, de encontro com Deus, de mil maneiras, não necessariamente
as formas religiosas tradicionais. O enfrentamento entre fé e ciência teve seu
auge no Iluminismo, mas que hoje não está tanto na moda, graças a Deus, porque
nos demos conta da proximidade que há entre uma coisa e a outra. O Papa Bento
XVI tem um bom magistério sobre a relação entre fé e ciência. Em linhas gerais,
o mais atual é que os cientistas sejam muito respeitosos com a fé, e o
cientista agnóstico ou ateu diga: “Não me atrevo a entrar nesse campo”.
Qual é a sua opinião sobre a
renúncia de Bento XVI?
O Papa Bento fez um gesto
muito nobre. Abriu uma porta, criou uma instituição, a dos eventuais papas
eméritos. Há 70 anos, não havia bispos eméritos. Hoje, há quantos? Bom, como
vivemos mais tempo, chegamos a uma idade em que não podemos seguir adiante com
as coisas. Eu farei o mesmo que ele, pedirei ao Senhor para me iluminar quando
chegar o momento e me dizer o que tenho de fazer, e seguramente vai me dizer.
Tem um quarto reservado em uma
casa de repouso em Buenos Aires.
Sim, em uma casa de padres
idosos. Eu deixaria a Arquidiocese no final do ano passado e eu já havia
apresentado a renúncia ao Papa Bento quando completei os 75 anos. Escolhi um
quarto e disse: “quero morar aqui”. Trabalharia como padre, ajudando as
paróquias. Esse seria o meu futuro antes de ser papa.
Não vou lhe perguntar quem
apóia na Copa do Mundo...
Os brasileiros me pediram
neutralidade (ri) e cumpro com minha palavra, porque o Brasil e a Argentina
sempre são rivais.
Como gostaria de ser recordado
na história?
Não pensei nisso, mas gosto
quando alguém, recordando outra pessoa, diz: “Era um cara bom, fez o que pôde,
não foi tão ruim”. Com isso me conformo.
Mais em IHU
Nenhum comentário:
Postar um comentário